quarta-feira, 24 de julho de 2013

O resgate de uma cultura... Isso não pode ser esquecido!

"A batida de mais de mil pés, em ritmo de dança, levanta a poeira do terreiro, corta o silêncio da floresta e desperta o mundo para suas origens.
É tempo de despertar, encher nossas vidas de motivações positivas para resgatar nossos valores étnicos e culturais, para não perdemos de vista o caminho de onde viemos."


Estamos reunidos esta semana na aldeia Mutum, Terra Indígena do Rio Gregório, nas florestas do município de Tarauacá (AC), para celebrar a cultura do mariri yawanawa. É um  encontro onde a magia e a beleza de um povo rompem o silêncio da floresta para entoar aos quatro cantos da terra a força de nossa tradição.Um belo texto publicado no Blog da Amazônia, de Altino Machado, vale muito a pena clica para ler
Isso me faz voltar no tempo, não muito tempo atrás, após morar e estudar nos Estados Unidos por cinco anos, quando retornei, em 2001, trazendo na bagagem muitos sonhos, entre os quais o de fortalecer a cultura e a espiritualidade yawanawa, o que parecia uma utopia naquele tempo.
Tinha sido convidado pelo meu povo para liderá-lo, em uma época onde a cultura, espiritualidade e as manifestações do yawanawa estavam sendo enfraquecidas e quase sendo esquecidas.  
Os velhos sábios, pajés e doutores do conhecimento tradicional yawanawá, como Tuin Kuru, meu pai, estavam esquecidos pelos jovens, muitos acreditando que a "cultura da cidade” era melhor do que a de nosso povo. Eles só queriam saber de ir para Tarauaca (AC),  para dançar forró, beber, e virar nawas (brancos).
Chegando na aldeia, chamei todos os velhos sábios para me aconselhar e lhes pedi que me ensinassem como liderar nosso povo. Na ocasião, foi realizada uma grande assembleia que durou três dias, quando houve uma profunda reflexão sobre a situação do povo yawanawa no passado, no presente e como gostaríamos de ser no futuro.
Tive essa inspiração ao vivenciar uma longa jornada espiritual com os povos indígenas do Canada, Estados Unidos, México, Venezuela, como os Tepehuanos, Raramuri, Panare, Piaroa, que  lutavam para seguir preservando seu conhecimento tradicional, mesmo que para o modelo de desenvolvimento econômico capitalista pudesse representar um obstáculo.
Aquelas comunidades, por  semanas, realizavam cerimônias, onde todos ficavam em jejum vários dias, antes de beber a bebida sagrada e dançar durante a noite de lua cheia. No caso do México, era o Jikuri, no caso dos Piaroa era o que  chamavam de Yopo, em busca da revitalização da cultura e da espiritualidade.

Então propus iniciar uma nova era de trabalhos com a celebração de cinco dias praticando nossas manifestações culturais e espirituais, dançando, brincando, bebendo uni (ayhauasca).  Nessa época, as únicas pessoas que sabiam, que guardavam o conhecimento de como eram essas manifestações culturais do povo yawanawa, era Tuin Kuru, Tatá, Yawarani e dona Nega. No entanto, Tuin Kuru, era o que mais conhecia as expressões artísticas e as manifestações culturais.
Raimundo Luis Tuinkuru foi um visionário  que trabalhou arduamente até os últimos dias de sua vida em repassar para seu povo todo o seu conhecimento da cosmologia yawanawa. Dedicou sua vida para que a arte, a cultural material, o canto, a dança, a manifestação cultural e espiritual yawanawa não desaparecessem com o tempo, mas para que ela estivesse sempre na vida de cada membro de seu povo.
Mesmo vivendo num mundo globalizado, era seu desejo que o povo yawanawa não perdesse sua conexão com o mundo espiritual, de onde viemos e que, através da arte e da manifestação cultural e espiritual, pudéssemos alegrar nossos espíritos e afastar o mal.  Em vida, Tuinkuru trabalhou arduamente para que o povo yawanawa não perdesse seus costumes tradicionais como a língua, as manifestações culturais e espirituais.
Costumava despertar quando o dia ainda estava clareando e chamava os filhos, os genros, as mulheres, as crianças, para ouvirem seus conselhos sobre como lidar com a vida. Discorria sobre um conto para depois tirar moral da historia e usar como uma lição de vida. Pela manhã, chamava as pessoas para tomar caiçuma e aconselhava a todos sobre moral e virtudes para viverem bem na terra.
Para Tuinkuru, qualquer lugar, era uma sala de aula. Até mesmo a beira de um lago, durante uma pescaria comunitária, servia como palco para ele disseminar o conhecimento tradicional yawanawa. Ainda jovem, aprendeu com seu tio que cada lugar da floresta tem um dono. Se o dono daquele lugar for uma pessoa boa, facilmente encontravam-se frutas, caças e madeiras. Porém, caso o dono fosse miserável, o lugar seria hostil e não produzia nada, pois ele não dava nada a ninguém.
Tuinkuru era um sábio, um filósofo da floresta, um líder, um visionário, que  amava as pessoas incondicionalmente. O seu grande conhecimento da cosmologia yawanawa era tão vasto que era capaz de explicar com detalhes e argumentação sobre qualquer tema e, depois de finalizar sua explicação, deixar qualquer pessoa com a sensação de ter tido uma grande lição de vida.
Foi um grande contador de historias, mas não contava apenas por contar. Ele enfatizava  e buscava as ligações que a história tinha com o mundo em que vivemos, contava com a arte de contar. Mesmo que uma historia fosse aborrecida, ele a transformava numa história atrativa e doce aos ouvidos de quem tivesse ao seu redor.
Tuinkuru atuava, gesticulava e não deixava ninguém sair do círculo sem que tivesse entendido o moral da história que certamente lhe serviria algum dia na vida. Nunca passava despercebido. Sua notável presença se dava sempre pela forte liderança que sempre exerceu durante sua vida. Ele se dispôs a compartilhar seu conhecimento para essa grande celebração acontecer. Naquele tempo, os jovens yawanawa não conheciam como se fazia muitas de suas brincadeiras. Conheciam apenas poucos cantos. As pinturas faciais e corporais eram simples e pouco variadas.   
Todo o povo se animou e, em poucas semanas, se organizou o I Festival de Manifestações e Tradições do Povo Yawanawa, que ocorreu em 2002, com o único propósito de ser uma festa da própria comunidade, onde se manifestariam as cerimônias, brincadeiras que não eram praticadas há muito tempo.
Foram cinco dias sem parar, dia e de noite, como uma programação organizada e dirigida pelo Tuin Kuru. Foi inesquecível o dia em que todas as mulheres, homens, velhos, crianças apareceram vestidos tradicionalmente, pintados, cantando como se fosse antes da chegada do homem branco.
Tuin Kuru, com lagrimas nos olhos, falou que apenas nos sonhos veria nosso povo daquela maneira e que agora ele podia morrer feliz. Ele falou que já fazia mais de 70 anos que muitas das  cerimônias não eram praticadas.
Para essa celebração, os únicos nawas (brancos) amigos que foram convidados foram  o Josh Sage e seu irmão Jade Thomas, para registrar e tornar realidade um antigo sonho,  de produzir um documentário sobre nosso povo.
O documentario, com apoio da empresa Aveda Corporation Inc., foi produzido em 2003, com o titulo “Yawa  – a história do Povo Yawanawa". O primeiro filme sobre o povo Yawanawa originalmente narrado na língua Yawanawa, pelo pajé Tata, e traduzido para  nove línguas (português, espanhol, inglês, coreano, alemão, italiano, francês… ), foi dirigido e co-produzido por mim.
A partir daquele importante evento, veio o “renascimento” do povo yawanawá, onde a cultura começou a ser valorizada por sua população, sobretudo pelos jovens que passaram a se sentir orgulhosos de pertencer ao povo yawanawa. E começaram a ficar curiosos de saber mais sobre sua própria espiritualidade e cultura. Os pajés, como Tata, se tornaram pessoas de muito valor para os jovens por causa do conhecimento do qual eram detentores.

Um exemplo foi Hushahu, que era uma jovem que dava trabalho para nossos pais, e queria só saber das coisas da “cidade.” Pouco depois, Hushahu foi a primeira jovem mulher que teve a iniciativa de aprender com Tata e seu pai Tuin Kuru sobre o xamanismo yawanawa e se tornou pajé também.
Depois de Tata e Yawarani, não tinha mais nenhum pajé jovem que pudesse seguir liderando o xamanismo na comunidade. Hushahu percebeu isso e sentiu que seu destino era o de seguir o exemplo de Tata. As pessoas, sobretudo os homens da aldeia, riram da iniciativa da Hushahu, pensando que, por ela ser uma mulher, não poderia ser pajé, pois não conseguiria fazer os sacrifícios que precisariam ser feitos, por um ano, pelo menos, para conseguir tal objetivo.
Apesar de não ter contado com o apoio da maioria, Hushahu perguntou para seu pai Tuin Kuru, e ele, sabiamente, lhe respondeu que a espiritualidade yawanawa não tinha nada a ver com o sexo (gênero), que o conhecimento vinha do espírito e, que se ela tinha esse objetivo, fosse em frente, mais que não brincasse, porque era uma coisa muito séria.

Foi aí que Tuin Kuru conversou com Tata, o último dos pajés mais fortes yawanawa, para ser o mestre de Hushahu durante um ano. Pouco depois, Hushahu foi seguida pela Putani, sua irmã, que também quis se refugiar junto com ela na mata para aprender e dominar o xamanismo com os mestres Tata e Tuin Kuru.
Ate agora, Hushahu foi a única mulher jovem que realmente conseguiu ficar isolada na mata, em dieta, estudando e aprendendo com Tata, sem sair, durante um ano, sem beber água pura, açúcar, sal, comendo muito pouco, apenas para manter o corpo vivo.
Basicamente, o alimento consistia de 24 horas de uni (ayahuasca) e rapé (tabaco torrado). O resultado foi incrível: Hushahu se transformou em uma mulher bela, forte e respeitada pelos próprios homens que riram dela no início.
Durante esse tempo de dieta, Hushahu recebeu fortes sonhos xamânicos, novos cantos, pinturas corporais e faciais detalhadas e elaboradas, que atá agora são usadas nos festivais yawanawa.
O sucesso de Hushahu quebrou um tabu na tradição yawanawa, onde só aos homens era permitido beber uni e estudar para ser pajé. Hushahu abriu o caminho para outros jovens, incluindo mulheres, que quisessem seguir seu exemplo. Isso tudo graças ao apoio e sabedoria dos velhos Tuin Kuru e Tata, mestres e doutores do conhecimento tradicional.
Atualmente, Hushahu continua estudando seriamente e praticando o xamanismo Yawanawa, cada dia criando mais pinturas faciais/corporais usadas nas pulseiras feitas de miçanga, pintando telas a partir de seus sonhos xamânicos e inovando a arte yawanawa.
O festival, agora conhecido como “Yawa", continua sem a orientação de Tuin Kuru e tem alcançado seu verdadeiro propósito. Mas em todo processo de aprendizado há sempre um ponto positivo e, bem ou mal, as novas gerações, aprenderam que seu conhecimento tradicional é valioso.
Aprenderam que isso pode se transformar em uma oportunidade para que mais jovens voltem a suas raízes e se aprofundem na floresta junto com seus velhos sábios, em busca do saber espiritual de seus ancestrais. E este saber deve ser praticado de forma honesta e séria, para que possa contribuir para o fortalecimento de uma cultura milenar.
O primeiro Festival Yawanawa, tinha como objetivo fortalecer a cultura e espiritualidade Yawanawa, mas com o tempo se tornou muito turístico e nós queremos resgatar a essência da espiritualidade, fazendo reflexão interna, algo mais intimo.

Por isso, até o dia 28 de julho estaremos dedicados à cura, dança, canto, manifestação cultural e espiritual yawanawa na sua essência, na sua pureza, sem interferência da cultura ocidentalizada, conforme a visão do líder Raimundo Tuin Kuru.
O mariri, resgata e fortalece a visão inicial do Yawa, de reunir os yawanawa durante uma semana para celebrar a vida, pois, segundo nossa tradição, a nossa alma sempre tem que esta alegre, se não ele volta.
Sentado numa rede, um pajé reza toda a noite para curar uma pessoa enferma. Reza também para a comunidade global viver saudável, em harmonia com as pessoas e o meio ambiente em que vivem.
Num cantinho despercebido da Amazônia brasileira, o povo yawanawa celebra uma semana de dança, manifestação artística, cultural e espiritual num ato de agradecimentos aos espíritos da floresta pelos bens que ela oferece.
A batida de mais de mil pés, em ritmo de dança, levanta a poeira do terreiro, corta o silêncio da floresta e desperta o mundo para suas origens.
É tempo de despertar, encher nossas vidas de motivações positivas para resgatar nossos valores étnicos e culturais, para não perdemos de vista o caminho de onde viemos.
Hoje nossos velhos podem dormir em paz, pois já cumpriram com sua missão. Nossa missão agora é manter viva a memória de nosso povo, não deixar que a globalização mude nossos costumes e nossa maneira de viver. Cuidar de nossos territórios sagrados para que o verde da floresta de onde vivemos continue a florescer ao amanhecer de cada dia. Cultivar nossas raízes, para que tenhamos uma identidade, cultura e espiritualidade que assegure nossos valores tradicionais. Enfim, que continuemos para sempre yawanawa, que significa povo da queixada.

Por Tashka Yawanawa 
Texto retirado na íntegra do Blog da Amazônia, de Altino Machado.

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